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Foto Mário Vasa

Quem pesca por gosto (e pelo Sporting) não se cansa

Por Jornal Sporting
21 Out, 2017

São amadores, gastam 'rios' de dinheiro em material e por vezes até são obrigados a pedir folga no trabalho para poder treinar ou competir, mas todos se orgulham de envergar o leão ao peito

Oito horas da manhã de terça-feira, mais coisa menos coisa. Coruche. O ritual é o mesmo de sempre, com o ponto de encontro marcado para a Casa de Pesca, junto ao Rio Sorraia, que banha a região – só em dia de competição o horário habitual passa para 7h, obrigando a que a concentração seja às 6h, dependendo do local onde se realizam as provas e, consequentemente, os treinos de adaptação ao rio. Aos poucos, a equipa de pesca desportiva do Sporting começa a ganhar forma. “Venham, vamos entrar. Temos de comprar as larvas, as sementes, os consumíveis…”, começa por dizer Carlos Mata, capitão e director da secção leonina, ao Jornal Sporting.

Por esta altura, já o Sr. Jorge, proprietário da loja, está com a mão na massa, que é como quem diz no ‘engodo’, acabadinho de sair do frigorífico. Se preferir, nas larvas varejeiras, que servem de isco para os peixes. “Este é o homem que vende os bichinhos e engana a gente”, diz um dos pescadores leoninos, provocando a risota geral. “Oh Jorge, vais aparecer no Jornal Sporting, hoje é tudo de borla”, refere outro, motivando mais gargalhadas. As investidas persistem: “Podias ter aparado o bigode e tudo”, ouve-se também no meio do convívio matinal, até que a voz de comando dá um ar mais sério à coisa.

“Por prova, só estamos autorizados a utilizar quatro litros deste asticot (o tal engodo), que são apresentados à fiscalização da competição dentro de umas caixas calibradas e homologadas pela federação. Depois, vão à pesagem, antes de serem ‘espetados’ no anzol”, explica-nos novamente Carlos Mata, acrescentando prontamente: “Os peixes são loucos por isto”. O processo é simples: o asticot é enrolado com as mãos e quando tiver a forma de uma bola (para chegar mais longe) é arremessado para a água com uma fisga, para ‘delírio’ das carpas, barbos e bogas. Noutros casos, ainda são adicionadas outras sementes, como o cânhamo, que dá origem à famosa canábis. Impera a pergunta: qual o seu efeito? Laxante, caro leitor. E ainda acaba por ser um ‘estimulante’ natural, já que obriga a que o peixe coma e tenha vontade de comer, fazendo-o deitar os asticots fora, que depois são reutilizados.

Deitar (muito) dinheiro à água

Iscos à parte, segue-se o treino, com a preparação dos equipamentos nos pesqueiros. Antes, tem lugar um sorteio, de forma a definir o posicionamento dos pescadores leoninos no pontão junto ao rio. “Somos 15, mas temos um atleta que está a trabalhar no estrangeiro, outro é de Leiria e está retirado, também temos um veterano e ainda um elemento com deficiência. Costumamos ser 10 a treinar, geralmente ao fim-de-semana, sendo que algumas provas também servem para afinar as canas”, conta Carlos Mata, alertando para os problemas de logística e ainda frisando a complexidade financeira deste desporto, uma vez que todos os pescadores leoninos são amadores, já que intercalam as pescarias com as suas profissões.

“Isto para se estar ‘afinadinho’ tem que se ir muitas vezes à pesca. Não é no computador ou a ver vídeos, é a praticar, tentando colocar a bóia e o engodo no sítio certo. Isso requer muito trabalho”, garante. O problema são os custos financeiros. Dependendo do local da pesca, cada um gasta em média 50 euros por treino, entre gasóleo, portagens e alimentação – muitos chegam a ter de pedir folga no trabalho para não faltarem à convocatória. Ainda assim, nada que se compare aos gastos no equipamento.

"Para um treino traz-se quatro ou cinco canas de inglesa e uma de francesa, com dois ou três kits. Uma inglesa custa entre 200 a 300 euros e uma francesa de 1500 a 3000. O banco para nos sentarmos (panier) custa à volta de 1000 euros. E ainda temos uma alcofa com todos os acessórios: fisgas, caixas dos anzóis, suportes e rolos para as canas correrem… Basicamente, um estojo de pescador, hoje em dia, ronda os 10.000 euros… mas depois temos em casa uns 20.000 euros ou mais de material. Eu, por exemplo, tenho perto de 40 canas inglesas e umas três ou quatro francesas”, sublinha novamente Carlos Mata, no Sporting desde 1990, sendo actualmente não só coordenador como também o capitão de equipa – deixou de valer para as contas da equipa no último ano devido a problemas de visão.

Basicamente, é ele quem comanda as tropas (cinco pescadores mais dois suplentes), tendo de tomar decisões difíceis durante as provas, como escolher um dos dois estilos a usar. Nós explicamos: a pesca francesa é feita com uma cana de 13 metros, tendo uma bóia perpendicular na ponteira. Já a inglesa requer uma cana mais curta, projectando bóias entre os 30 e 50 metros de distância – é considerada ideal para pescar aos pés ou junto à margem contrária. “Por vezes tenho de chegar ao pé de um atleta que está há uma ou duas horas a pescar à inglesa na captura e dizer-lhe: agora arrumas essa cana e vais pegar naquela francesa. Vais para ali e fazes ‘assim e assado’”, refere, deixando claro, ainda assim, que a maior parte das decisões são tomadas como equipa, sendo todos treinadores uns dos outros, já que partilham ‘ensinamentos’ entre si.

Importa salientar que o Sporting ocupa neste momento, ao fim de quatro das seis provas do calendário, o meio da tabela, estando muito perto dos primeiros lugares da Segunda Divisão Nacional – zona Sul.

O melhor que pode vir à rede é um ‘código postal’

Sorteio realizado, é hora de montar o material nos pesqueiros, separados na margem do Rio Sorraia por um intervalo de 10 metros. Geralmente, costuma haver algumas ‘guerras’ – saudáveis, diga-se – já que as pontam permitem aos pescadores ter vantagem na hora de obter capturas. Nos campeonatos, por exemplo, cada um só pode ficar uma vez nessa posição estratégica. A primeira coisa a fazer é montar o panier (banco), seguindo-se a preparação e calibragem das canas, consoante o estilo a utilizar.

Um aspecto importante já que este treino serve de preparação para a competição que ali decorre no próximo fim-de-semana. Além de afinar os últimos pormenores, o treino, que dura cerca de quatro horas (equivalente a uma prova), permite estudar a zona de pesca, assim como as espécies e o tamanho dos peixes, que irão determinar o material a utilizar.

Colocadas as canas em acção de pesca, um dos pescadores destaca-se dos demais pela boa-disposição. Trata-se de Paulo Cruz, um dos mais experientes a par de Carlos Mata, que já esteve na primeira divisão e até na Selecção Nacional. Depressa nos fazem a sua apresentação: “O Paulo só refila por duas coisas: por tudo e por nada”. Ninguém evitou as gargalhadas. “Se não houvesse esta rivalidade não tinha piada”, defende-se ‘Paulinho’, como é tratado pelos colegas. Sendo especialista no peixe grande, apelidado de ‘código postal’ por ser meio caminho andado para ganhar provas (devido ao peso), o amor que tem à pesca é proporcional ao do Clube que carrega ao peito.

“Já ando nisto há muito tempo. Uns 30 anos. É uma paixão idêntica à que tenho pelo Sporting”, afirma Paulinho que, do alto da sua vasta experiência, nos ensina uma das regras básicas na pesca, enquanto arremessa um asticot para o rio, atraindo os peixes a engolir o anzol: “Nunca te ponhas atrás de um pescador que vai lançar a cana”. Carlos Mata complementa: “O chumbo utilizado na ponta é uma autêntica bala”. 

Chutos e pontapés nos peixes

A fixar a bóia na linha, de forma a mais tarde ‘engodar’ de forma precisa, Nuno Marcelino afina o lançamento e a ferragem. No pensamento ainda tem aquele peixe com mais de três quilos que já apanhou ou aquela pescaria de mais de 66 quilos numa barragem. Algo que se consegue não só com talento e sorte como também com muito trabalho de casa na preparação de linhas e anzóis.

Montagens que chegam a demorar um fim-de-semana inteiro. “Quem corre por gosto não cansa”, diz com um sorriso Nuno Marcelino, que concilia a pesca desportiva com as aulas de Krav Maga, uma vez que é professor desta arte marcial. “É um bocadinho diferente [risos]. Pescar é um hobby, um vício que tenho desde pequenino. O bichinho está cá e não sai”, explicou, antes de se ‘atirar’ aos peixes.

Um sentimento partilhado por Nuno Nascimento, que começou a praticar aos 10 anos e hoje, já com 45, não pensa em parar. A mulher agradece: “Se eu tiver duas semanas sem ir à pesca, ela diz logo que eu estou insuportável, que não me pode aturar! [risos]”, exclamou.

Pescadores ou ecologistas, eis a questão

A calibrar a bóia, cuja gramagem depende sempre do gosto de cada um, Álvaro Inês chama-nos à atenção para um pormenor importante. É que existem pescadores que vão à pesca para comer, uns para vender e outros… por desporto, como ele. A diferença é grande.

“Somos os pescadores mais maltratados, mas somos os que tratamos melhor os peixes. Depois de serem capturados, vão para a manga de rede que está dentro de água e ao final de quatro horas são pesados e devolvidos ao rio. A ideia é aproveitá-los e não matá-los”, afirmou. Questionado se não reclamam em sua casa por chegar a casa sem ‘almoço’, Álvaro Inês foi peremptório.

“Lá em casa tenho vantagem porque a minha mulher também é pescadora e até foi campeã do Mundo no Brasil, se bem que a sua zona de acção seja em alto mar [risos]”, garantiu.

Os controlos anti-doping

Sendo a pesca desportiva considerada uma modalidade como tantas outras, não é de estranhar que tenha controlos anti-doping. Quer dizer, até é, mas faz sentido, uma vez que as competições são desgastantes, envolvem muita preparação de material e muitas horas sem dormir, devido às deslocações. Com um estimulante, torna-se mais fácil para um pescador estar mais atento e mais desperto. O problema é que estas substâncias são proibidas pela ADoP, que faz a fiscalização em cada prova.

Nada que afecte a equipa leonina: “Nesta equipa, o máximo que podiam acusar era Sportinguismo”, atira Carlos Mata, indo mais longe: “Temos o compromisso e a responsabilidade do emblema que trazemos ao peito”.

Conversa puxa conversa, o ponteiro do relógio chega rapidamente às 14h. É hora de almoço e, também, de dar por terminado o treino. Com uma balança à mistura, a pedido de alguns. “Quase sete quilos? Opá, vão para as obras. E querem estes gajos ir à pesca comigo [risos]”, afirma Paulo Cruz entre gargalhadas. É caso para dizer: quem pesca por gosto, e pelo Sporting, não se cansa.