Your browser is out-of-date!

Update your browser to view this website correctly. Update my browser now

×

Uma breve história de fair-play

Por Miguel Braga
19 maio, 2022

Editorial da edição n.º 3872 do Jornal Sporting

Aconteceu há quase dez anos e na altura foi notícia que correu mundo. Foi em Burlada, na região de Navarra, em Espanha, durante uma corrida de 3000 metros de corta-mato. Na parte final da prova, o atleta queniano Abel Mutai seguia na frente, destacado dos demais. Atrás de si, o espanhol Iván Fernández Anaya tentava acompanhar o passo. Na última recta, pensando que já tinha cortado a meta – quando na verdade ainda faltavam 10 metros – o queniano abrandou, parando e abrindo os braços em sinal de vitória. Iván Fernández Anaya poderia ter aproveitado o deslize, continuado a correr e, assim, vencer um atleta mais completo e mais forte – no seu currículo Mutai já tinha conquistado a medalha de ouro no Campeonato do Mundo de Juniores (2005), ouro também no Campeonato Africano (2012) e bronze nos Jogos Olímpicos de Londres (2012). Mas essa não foi a decisão do atleta espanhol.

"Eu não merecia ganhar", afirmou então Fernández Anaya. "Fiz o que tinha a fazer. Ele foi o vencedor legítimo. Criou uma distância que eu não poderia ter fechado se ele não tivesse cometido um erro. Assim que vi que ele estava a parar, eu sabia que não o ia ultrapassar". E assim foi. Fernández Anaya parou ao lado de Mutai e através de gestos explicou que o queniano tinha de continuar, tendo sempre o cuidado de ficar atrás dele. Curiosamente, o próprio treinador do atleta espanhol mostrou-se surpreendido com a decisão do seu pupilo, confessando que não teria tido a coragem para não ganhar. Já Fernández Anaya nunca se arrependeu: "Acho que ganhei mais nome fazendo o que fiz do que se tivesse vencido. E isso é muito importante, porque hoje, da forma que as coisas estão em todos os círculos, no futebol, na sociedade, na política, onde parece que vale tudo, um gesto de honestidade cai sempre bem."

Diz-se que a primeira referência à expressão “fair-play” pode ser encontrada na peça King John (1597) de William Shakespeare. Mas foi só a partir de 1800 que o fair-play ganhou razão de ser com o liberalismo burguês inglês e com o nascimento da chamada Indústria do Desporto. Quase 100 anos depois, foi Pierre de Coubertin que voltou a dar novo impulso a esta forma de estar na vida e na prática desportiva: "O mais importante na vida não é a vitória, mas a luta; o essencial não é ter vencido, mas ter lutado bem". Sobre a mesma temática, Jean D’Ormesson, membro do Comité Internacional do Fair-Play, afirmou: "A moral manifesta-se com mais sinceridade durante o jogo. (...) O fair-play permite-nos declarar que o desporto não se deve tornar numa manifestação de brutalidade. O fair-play ajuda o desporto a transformar-se num pilar da civilização. O desporto não é destruir, humilhar e quebrar o adversário; trata-se de jogar com o adversário para que ele possa empregar todas as suas habilidades humanas".

Num país onde há quem desvalorize o fair-play e defenda que vale tudo para ganhar, recordemos que o Desporto continua a ser um instrumento de excelência para acolher e dignificar os valores morais da sociedade.