O futebol está mais pobre: morreu Johan Cruijff
24 Mar, 2016
Holandês que revolucionou futebol como jogador e treinador faleceu aos 68 anos
O Mundo do futebol ficou esta quinta-feira mais pobre: morreu um dos últimos príncipes do desporto-rei, Johan Cruijff. Para um Clube que, como o Sporting Clube de Portugal, tanto aposta na formação, esta evocação serve também para dar o público testemunho aos nossos atletas da figura que hoje nos deixa, um homem que, com o seu talento e arte, revolucionou o futebol. Um Senhor dentro e fora de campo. Uma lenda que já o era antes da morte o arrebatar precocemente. “Johan Cruijff morreu em paz em Barcelona, rodeado pela sua família depois de uma dura batalha contra o cancro”, anunciou o site oficial do holandês em comunicado.
Nascido em Amesterdão a 25 de Abril de 1947, também ele foi protagonista de uma autêntica revolução daquilo que é hoje o futebol em dois momentos: primeiro, ainda como jogador, interpretando em campo a filosofia do ‘Futebol Total’ do carismático Rinus Michels; depois, como treinador, desenvolvendo o ‘Dream Team’ do Barcelona. A proximidade do Estádio de Ajax acabou por ditar aquele que viria a ser o início da carreira: entrou nas escolas dos ‘lanceiros’ em 1957, quando cumpriu o seu décimo aniversário, e, após perder o pai dois anos depois, quis respeitar a sua memória apostando em definitivo na carreira de futebolista como o progenitor tanto gostaria de ter visto – afinal, e até aos 15 anos, jogava também... basebol!
Subiu aos seniores do Ajax em 1964 e, na temporada seguinte, assumiu-se em definitivo como figura de uma das maiores gerações de sempre dos holandeses, sempre com uma filosofia muito próxima do Sporting de apostar na cultura de formação como ADN. Ganhou oito Campeonatos e cinco Taças da Holanda nas duas passagens pelo clube, ficando para sempre como o grande símbolo daquela que foi uma das melhores equipas de sempre do Ajax e que se sagrou tricampeã europeia entre 1970 e 1972 (além de ter ganho uma Supertaça Europeia e uma Taça Intercontinental) com Neeskens, Krol, Rijnders, Mühren, van Dijk, Rep, Haan ou Keizer, entre outros.
Em 1973, o avançado protagonizou a maior transferência de sempre até essa altura, rumando ao outro grande clube onde mudaria a história do futebol: o Barcelona. Como jogador, esteve cinco anos na Catalunha, vencendo ‘apenas’ uma Liga e uma Taça de Espanha antes de rumar aos Estados Unidos, com 32 anos. Ainda assim, foi nesse período nos ‘blaugrana’ que mais se destacou ao serviço da selecção da Holanda, onde foi vice-campeão mundial em 1974 e terceiro classificado no Europeu de 1976 com um futebol ainda hoje considerado por muitos como o melhor em fases finais. Antes de terminar a carreira no Feyenoord, em 1984, passou por Los Angeles Aztecs, Washington Diplomates, Levante e de novo Ajax onde teve o seu início como treinador.
Nunca conseguiu ser campeão holandês pelo Ajax entre 1985 e 1987, mas além das duas Taças liderou os ‘lanceiros’ na conquista da Taça dos Vencedores das Taças de 1987 numa equipa que contava com Rijkaard, Van Basten, Witschge, Bergkamp, Menzo ou Wouters, quase todos jogadores que tinham feito a sua formação no clube. Foi esse triunfo que levou o Barcelona a apostar em Cruijff para treinador a partir de 1988, abrindo um ciclo que dominou por completo o futebol europeu até 1996.
As várias versões de ‘Dream Team’ que construiu nos catalães venceram quatro Ligas, três Supertaças e uma Taça mas foi na Europa que mais se distinguiram, com uma Taça dos Clubes Campeões Europeus, uma Supertaça Europeia e mais duas finais. Foi com o holandês que nasceram e/ou se desenvolveram jogadores como Koeman, Laudrup, Romário, Guardiola, Stoichkov, Bakero ou Beguiristain, entre muitos outros. Desde a saída dos espanhóis, em 1996, orientou apenas a selecção da... Catalunha.
Em termos individuais, Johan Cruijff recebeu três Bolas de Ouro de melhor jogador entre muitas outras distinções mas o que fica é, sobretudo, um legado que nunca deve ser esquecido. Conhecido como um jogador elegante, inteligente, sagaz e com capacidade invulgar de finta, o holandês foi o maior intérprete do ‘Futebol Total’ de Rinus Michels em campo. Em linhas gerais, a filosofia que revolucionou na década de 70 o futebol defendia que a única posição fixa em campo é a de guarda-redes, promovendo a mobilidade e constante circulação de bola e jogadores pelo campo de forma pensada. “Todos os treinadores falam sobre movimentações, correr muito. Eu defendo que não se deve correr tanto. O futebol é um jogo para ser jogado com o cérebro. Deve-se estar no sítio certo com o movimento certo, nunca antes nem depois”, explicou. A ideia teve prolongamento na versão de ‘Cruijff treinador’ e, como muitos defendem, ainda hoje se vê essa influência através de jogadores com quem trabalhou, como Guardiola, e na forma de pensar de Ajax ou Barcelona a nível de formação, tal como está no ADN e génese do Sporting Clube de Portugal.
A título de curiosidade, e no seguimento de um trabalho feito no ano passado sobre a importância de Johan Cruijff no futebol actual, aqui ficam algumas das suas ideias:
- "Técnica não é ser capaz de dar 1.000 toques na bola, isso qualquer um faz praticando. E a seguir pode ir trabalhar para o circo. Técnica é passar a bola com um toque, à velocidade certa e para o melhor pé do companheiro"
- "Alguém que está a dar toques para o ar durante o jogo, com os quatro defesas do opositor a recuperarem os seus lugares, é o que as pessoas acham que é bestial. Eu digo que ele deve ir para o circo"
- "Escolhe o melhor jogador para cada posição e acabarás por ter 11 individualidades fortes mas não um 11 forte"
- "Nas minhas equipas, o guarda-redes é o primeiro atacante e o avançado o primeiro defesa"
- "Porque não se pode bater um clube mais rico? Nunca vi um saco de dinheiro marcar um golo"
- "Se quero que um jogador perceba algo, terei de explicar melhor"
- "Jogador futebol é muito simples mas jogar um futebol simples é a coisa mais difícil de fazer"
- "Acho terrível quando os talentos são rejeitados com base em dados estatísticos. Baseado nisso, teria sido rejeitado no Ajax. Quando tinha 15 anos, não conseguia chutar uma bola 15 metros com o meu pé esquerdo e chutava talvez 20 com o meu pé direito. As minhas qualidades técnicas e a minha visão não são detectáveis por um computador"
- "Qualidade sem resultado não vale de nada. Resultados sem qualidade é aborrecido"
- "Os jogadores que hoje só conseguem rematar com a peito do pé. Eu conseguia chutar com a parte de dentro, o peito e a parte de fora de ambos os pés. Por outras palavras, era seis vezes melhor do que os jogadores de hoje"
- "Há muito poucos jogadores que sabem o que fazer quando não estão marcados. Por isso às vezes deve-se dizer a um jogador: o avançado é muito bom mas não o marques"
- "Sobreviver a uma primeira ronda de grupos nunca foi o meu objectivo. Idealmente, estaria num grupo com Brasil, Argentina e Alemanha – assim, perderia dois rivais após a fase de grupos. É assim que eu penso"
- "Qualquer jogador de golfe profissional tem um treinador separado para os ‘drives’, para os ‘approaches’ e para os ‘puts’. No futebol há um treinador para 15 jogadores. É absurdo"
- "Se tens a bola tens de fazer do campo o maior possível e se não tens deves fazer o campo o mais pequeno possível"
- "Devemos garantir que os piores jogadores recebem mais a bola porque ela chegar-te-á aos pés num instante"
- "Só há uma bola, por isso precisas dela"
- "Quando se faz um jogo, está estatisticamente provado que um jogador tem a bola três minutos por jogo em média... Assim, o mais importante é o que fazer durante os outros 87 minutos em que não tens bola. É isso que determina se és bom jogador ou não"
- "Depois de se ganhar algo, deixamos de estar a 100% e passamos a 90%. É como uma garrafa de água gaseificada depois da tampa ser retirada, perde-se um pouco de gás"