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Nada será como Antes, Amanhã

Por André Bernardo
14 maio, 2021

Esse caminho hoje venceu contra todas as probabilidades. Alteremos as probabilidades e não o caminho

01 Foi sem mais nem menos que o telefone tocou.

Eu estava numa varanda madrilena, em casa de uns amigos, a celebrar um aniversário quando a notícia chegou. O céu não caiu, a terra não se abriu sobre os pés porque, na verdade, não há tempo para isso e também não há palavras que o consigam descrever. A morte bateu à porta pela voz de quem mais estava a sofrer com ela.

Não são momentos que se consigam esquecer porque mesmo querendo eles voltam sem avisar. Porque, quando menos se espera, o mais pequeno detalhe nos faz recordar. Nesse momento sabemos que o Acaso nos tirou o tapete e só ele “tem os que mais ama”1. E desde então todos os momentos felizes se tornam diferentes, porque aquilo que desejamos é que essa pessoa cá estivesse. Mas ela não está.

E, num qualquer momento vago, a memória recupera do baú a mais improvável lembrança de uma música esquecida. Ouço o som de um dos discos de vinil dos meus pais a tocar a inesquecível voz de Elis Regina cantando “Nada será como Antes, Amanhã”.
 

02 Foi sem mais nem menos que o telefone tocou.

Eu vivia naquela que me parecia ser uma fase normal da minha vida e, no preciso momento que o telefone tocou, repetia religiosamente a minha rotina, tomava o mesmo pequeno-almoço de sempre, no mesmo sítio de sempre. Do outro lado da linha, um amigo tinha tomado uma decisão e dizia-me que “em Nome do Sporting” ou fazíamos isto ou Nada seria como Antes. Não veio em tom de convite e também não teve resposta. O telefone desligou.

E, num qualquer momento vago, inadvertidamente, a memória traz-me um livro, o primeiro que li (que não de banda desenhada) quando era criança e que pousava entre muitos outros numa das prateleiras cheia de livros que existiam lá por casa. Na altura, o título chamou-me a atenção e decidi aventurar-me a lê-lo. Chamava-se “As aventuras de João Sem Medo”2. E nada foi como Antes, porque a partir dali a leitura ganhou para mim um lugar onde antes encontrava resistência.

O Acaso tem coincidências que a razão desconhece e sei hoje que os contos que deram origem ao livro foram inicialmente publicados em 1933 na gazeta infantil de nome “O Senhor Doutor”.

Na terra de “Chora-Que-Logo-Bebes” houve alguém que decidiu subir o Muro e entrar na “Floresta dos Entes Fantásticos.”

Não posso deixar de assinalar esta passagem do livro:

“- Bem… Os homens nunca se contentam... E eu a falar franco, fartei-me deste Imprevisto-Anárquico do Sonho em que vivi e agora apetece-me voltar a provar aquilo a que chamamos Realidade... Além disso... Ouve: vou dizer-te um segredo... mas promete-me que não o revelas a ninguém… Prometes? … Na verdade, o fito principal do meu regresso talvez seja o de tentar revolucionar Chora-Que-Logo-Bebes... endireitar as espinhas dorsais das pessoas... secar as lamentações covardes dos choraquelogobebenses... pregar a reorganização viril da vida em novas bases…”.

E foi assim que soube que a partir daquele dia, no momento em que o telefone tocou, “Nada será como Antes, Amanhã”.
 

03 Foi sem mais nem menos que o telefone tocou.

Era a voz preocupada de quem tem laços de sangue e tinha acabado de ouvir nas notícias que membros do Conselho Directivo do Sporting CP tinham sido agredidos. Tranquilizei os meus pais, mas não consegui convencê-los nesse momento do porquê de continuarmos nisto sem necessidade.

Às vezes a memória é curta e o extraordinário parece tornar-se ordinário até que o pior acontece e Nada passa a ser igual ao que era Antes.

Ex nihilo nihil
(Nada vem do Nada)

Não foi sem mais nem menos que chegámos até aqui.

Quando abraçámos este desafio não o fizemos porque era fácil, mas sim porque era difícil.

Campeões ou não, acreditamos que o caminho que escolhemos desde 2018 é o correcto e consistente com o ADN do Sporting CP.

Não acertámos em todas as decisões, como aliás ninguém acerta.

Não escolhemos o caminho das pedras, mas escolhemos não seguir o caminho das panaceias, recusando “que nos cortem a cabeça para não pensar, não ter opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas”3.

E também não cortamos a cabeça a quem pensa diferente.

O custo de outros caminhos sempre veio a um preço demasiado alto, às vezes quase insustentável.

“Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira”.

Esta é a célebre frase que dá início ao romance Anna Karenina, de Tolstói. Com base nela surgiu o princípio de Anna Karenina, que dita que uma falha num qualquer factor determina que um evento ou sistema falhe. E que, por consequência, para que um evento seja exitoso nenhum dos vários factores pode falhar.

Todos os caminhos estão sujeitos às incidências do Acaso. Encontrámos vários neste percurso, inclusive a maior pandemia mundial dos últimos 100 anos.

Para que o Sporting CP fosse campeão todos os factores tiveram de contribuir. Há factores que nós controlamos e outros que não. Tivemos que lidar com todos eles.

Esta vitória deve fazer-nos a todos parar, reflectir e efectuar um exame de consciência.

A força do Sporting CP como um todo diminui sempre que haja apenas um de nós que coloca os seus interesses pessoais acima do Clube e tenta dividir para reinar.

O Sporting CP foi Campeão dentro de campo porque soube primeiro ser Campeão fora dele.

Que o nosso caminho continue a ser o de dar um passo à frente sem ter que dar dois atrás.

Que o nosso caminho, que terá momentos altos, mas também outros menos altos, seja de união e, no seu equilíbrio, de crescendo contínuo.

Que o nosso caminho seja o de motivar pela persuasão e pelo exemplo e nunca pelo medo.

Porque o último inevitavelmente capitula e o primeiro perdura.

Numa realidade paralela, algum factor podia ter falhado e podíamos não ter sido Campeões. Porém, a vitória do caminho já estava assegurada.

Esse caminho hoje venceu contra todas as probabilidades. Alteremos as probabilidades e não o caminho.

Não esqueçamos nunca que o caminho até aqui foi longo.

O desafio era exigente e, por isso, é altíssima a recompensa que todos os Sportinguistas merecem e conquistaram.

E que fique evidente para todos três coisas que deviam ser óbvias:

I. União não surge nos momentos bons, os momentos bons surgem porque existe União;

II. aqueles que em qualquer vitória sorriem sempre são a maioria;

III. apenas a nossa força interna nos vai permitir superar os factores que nós não controlamos, para não serem eles a controlar-nos a nós.
 

04 Foi sem mais nem menos que o telefone tocou.

A voz, antes preocupada, era agora de alegria e orgulho. O Sporting CP era campeão.

E a memória trouxe-me todos os momentos que aqui refiro e outros marcantes de uma caminhada cheia deles. Mais do que deveria ter tido...

Cada um terá vivido a felicidade desta vitória à sua maneira. Eu hoje partilho um pouco da minha, com aqueles que queria que cá estivessem, com aqueles que me fizeram cá estar, com aqueles que viveram comigo esta travessia, e com os que não conheço, mas que têm em comum comigo o Sporting CP. Na certeza, mas também na esperança, de que “Nada será como Antes, Amanhã ou Depois de Amanhã”.

1. Referência à letra da música “125 Azul”, dos Trovante; 2. Obra literária de autoria de José Gomes Ferreira; 3. Citação do livro “As aventuras de João Sem Medo”.
 

Editorial da edição n.º 3819 do Jornal Sporting