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Afinar os instrumentos para soar a orquestra

Por Jornal Sporting
21 Nov, 2015

A importância de Szabo e a estreia de Peyroteo com um 'bis' ao Benfica

Estava dado o veredicto: “Sinhor Férnando ter jeiteira mas precisar trabalhar muito. Bom pontapé, bom côrrida. Precisar muito ‘treining’ dê técnica de ‘foot-ball’”. No seu português macarrónico ­– inversamente proporcional aos conhecimentos límpidos de futebol –, o treinador húngaro Joseph Szabo avaliava a prestação do primeiro treino, à experiência, de Peyroteo (que chamava sempre de ‘Sinhor Férnando’). Um treino de duas horas que começava com a promessa de ser breve, mas que terminava com o jogador, acabado de chegar do Sporting de Luanda, à beira de um esgotamento físico. Fez passes de todas as formas e rematou à baliza com o próprio Szabo no lugar do guarda-redes – a ‘desmascarar-lhe’ as artimanhas, por sinal: Peyroteo decidira atirar ‘ao boneco’ para que, se o remate saísse mal, ainda houvesse uma margem até aos postes. “Sinhor Férnando: assim ser canja! Querer furar bariga de guarda-redes? Atirar para junto dê postes!”, advertiu o técnico, que o obrigou a correr para apanhar cada bola enviada para fora da baliza. 

Apesar do veredicto final não parecer muito entusiasta, Szabo viu em Fernando Peyroteo, chegado aos 19 anos a Lisboa no paquete Niassa, a centelha do talento. Nesse mesmo dia, informou a Direcção que estava interessado na contratação do jogador e, no dia seguinte ­– em que Peyroteo só se conseguiu levantar da cama ao meio-dia, tais as dores que tinha no corpo – estava o novo avançado a assinar, sem ler, o contrato que o ligaria aos ‘leões’.

Daí até ao primeiro treino em conjunto com a equipa não demorou muito. Eram 7h15 da manhã e Peyroteo era dos primeiros a chegar. Para todos era um dia normal, mas não para a jovem promessa. As pernas não o deixavam mentir: tremiam como varas verdes. Embora nos primeiros instantes os jogadores mais experientes lhe tivessem dirigido algumas piadas numa tentativa de praxe, assim que começou a rolar a bola todos o ajudaram ­– incluindo Soeiro, um dos melhores avançados da história do Clube, que Peyroteo viria a substituir, relegando-o para a posição de interior esquerdo. E assim, apesar dos nervos, apesar da inexperiência, apesar de tudo, Peyroteo marcou três golos ao mítico guarda-redes Azevedo, dando logo nas vistas dos companheiros. Aníbal Paciência, por exemplo, não teve dúvidas em dizer-lhe: “Estou certo que o lugar de avançado-centro vai pertencer-te”. Szabo, pedagogo por excelência, em vez de lhe alimentar o ego, apontou-lhe os erros – “estar mal dê desmarcação; andar perdido em campo; não saber cortar jogada” – obrigando-o a treinar até às 10h30 (mais uma hora do que os restantes companheiros) para emendar o que não tinha sido bem feito. 

Aliás, daí em diante, Peyroteo passou a treinar sempre mais duas vezes por semana do que os colegas, por indicação de Szabo. Às quartas e sextas-feiras, além dos exercícios atléticos – Szabo era obcecado por este aspecto do treino – o treinador ensinava pormenores tácticos e técnicos, chegando ao ponto de informá-lo a respeito das características de cada um dos seus companheiros de equipa e de lhe dar aulas de táctica com bonecos, depois do duche – o que, muitas vezes, o fez perder a ‘matinée’ de cinema, já com bihete comprado. “Sinhor Férnando, seu cinema ser este. Deixar garotas! Fazer-se primeiro grande jogador de ‘foot-ball’ e ter, dêpois, todas garotas dê Mundo... Cárágo, Fernando, ser um sarílio para atender todas! Ir ver, Férnando”, dizia-lhe o técnico, lembrado por Peyroteo no seu livro de memórias. Nessa mesma obra, aliás, o maior goleador do futebol mundial atribui ao técnico húngaro grande parte do seu sucesso como jogador e demora-se a explicar as regras dos seus treinos. As sessões começavam às 8h da manhã, mas todos tinham que estar equipados e preparados para entrar em campo às 7h45 – Szabo entrava no balneário, de fato de treino e boina na cabeça, e dava três apitadelas com o seu apito: quem não estivesse, seria castigado com 10% do seu ordenado. Quando chovia muito, e perante as ‘manhas’ dos jogadores, era pronto na resposta: se não treinassem na chuva, como fariam se os jogos acontecessem nas mesmas condições climatéricas? Ah, e claro, recomendava aos seus jogadores distância das mulheres durante o fim-de-semana. “Ficharem torneira dê nêmoros dê mininas. Atenção, fazer muito mal e precisar canetas para jogo”, recorda Peyroteo, que muito estranhou, de início, a intensidade das sessões de trabalho do técnico húngaro. “Em Luanda, os treinos limitavam-se a uma ou duas voltas ao campo, para aquecer os músculos, e depois um treino de futebol com onze homens de cada lado”, relata.

12 de Setembro de 1937, Campo das Salésias, Torneio Triangular. De um lado o Sporting, do outro o Benfica, os eternos rivais. Para Peyroteo poderia ser mais um ‘derby’, não fosse aquele o seu primeiro jogo oficial com a camisola do Sporting. Enquanto os seus colegas, habituados já àquelas andanças, viam o jogo como um treino, Peyroteo tremia com os nervos – aliás, um dos directores do Clube, em tom de gozo, receitou-lhe chá de tília para acalmar e teve de ser Szabo a ligar-lhe os pés, tarefa de que o próprio Peyroteo sempre se encarregou. Quem brincasse com o novato jogador, tinha a sua sentença traçada: perdia 10% do salário. Entrado em campo, ao fim de dois remates, Peyroteo já tinha esquecido os nervos, o público em alvoroço e a responsabilidade que tinha nas costas, apontando dois dos cinco golos com que os ‘leões’ bateram as ‘águias’ (5-3). A façanha tem ainda mais valor quando se sabe que aquela era a primeira vez de Peyroteo num campo relvado e com ‘pitons’ debaixo dos pés. Estava lançado o início auspicioso de uma carreira fulgurante.